24.9.07

sempre próximo do fim

achou um pouco estranho quando acordou naquela manhã de setembro e percebeu que não sentia mais dor. observou cada parte do corpo onde antes haviam hematomas. eles haviam sumido, tão misteriosamente quanto haviam aparecido um dia. joana nem conseguia crer no que estava sentindo. foram anos de dor, de misteriosas feridas sem explicação e a eterna impressão de que tudo sempre estaria próximo do fim. sempre, próximo do fim.
naquele primeiro dia sem dor, ficou em dúvida sobre o que poderia fazer. ir a praia, pensou. caminhar pelo parque, outra hipótese. tinha receio. não confiava em si mesma e desconfiava que a qualquer momento colocaria tudo a perder. não havia motivo, pensava, para que tudo mudasse a partir de agora. de fato mesmo, o que faria da vida se não sentisse mais nada? não fazia muito sentido a ausência da dor, da sua tristeza ininterrupta e de todo o resto que a acompanhava.
joana não hesitou, resolveu ficar em casa, fechar todas as janelas e esperar por ela até que resolvesse voltar. sim, tinha certeza como poucas vezes naqueles anos mal vividos. ela voltaria e se sentiria mais segura para ir em frente.
joana nunca imaginou que gostava tanto de ser do jeito que era. confiante como nunca havia sido, ela colocou uma música e deitou no meio da sala, com pouca luz e nenhuma vontade de sair dali. e lá decidiu que ficaria, até a volta da felicidade.

16.9.07

sorriu antes do último suspiro

... e quando descobriu que não havia mais perspectivas e tudo tava no fim olhou firme para a distância entre a porta da cozinha e o muro no fundo do quintal. calculou uns trinta metros mais ou menos. nem pestanejou. disparou em linha reta e mergulhou de cabeça, assim, direto. o crânio esfacelou-se na tinta branca do concreto recém-pintado. estrebuchou por uns trinta segundos e depois sorriu antes do último suspiro.

nada, somente nada

rastejou pelas beiradas tentando nem ser notado naquela condição extrema de ser nada, somente nada. gostava de ser assim, fazer o quê...

sobre os escombros da cidade destruída

não se incomodava com a feiúra física das pessoas com quem cruzava nas ruas. não, não era isso. tinha aversão ao olhar perdido, à expressão cabisbaixa e ao sorriso de quem pouco entendia o que ouvia. traduzia como burrice mesmo, não conseguia diferente. joão andava assim, de um lado pro outro não suportando mais tanta gente feia no seu caminho. cultivava um sentimento estranho de quem buscava uma forma de vingança simples porém honesta. ao longo de seus 45 anos, imaginou que não poderia mais suportar tudo aquilo. e assim foi, deixou o tempo passar. quando dormiu ao fim de mais um dia, sonhou que acordaria com quase nada de pé no seu entorno. assim, sobre os escombros da cidade destruída, poderia ser bem mais feliz.

9.9.07

amor à segunda vista

do primeiro amor e da primeira dor ainda tinha viva na lembrança o sofrimento. cinco anos depois, já sabia que a rima era piegas e acabava mal. do balanço no parque e da bicicleta do menino que ia e vinha permanecia a sensação de que aconteceria novamente. e foi assim durante todo o tempo. sempre o mesmo balanço e o mesmo parque. e o menino nada. sumido assim, para todo e sempre. ela ia todos os dias, andava por lá, olhava e esperava. com dezesseis anos, tinha o mesmo cabelo de fogo espetado de tempos atrás. algumas vezes, imaginava o menino passando rápido e olhando de dentro de um carro que circulava o parque. imaginação talvez, não sabia.
um dia então, sem mais nem menos aconteceu. ela chegou, esperou e ele apareceu. cabeleira ainda vasta, passou por ela, caminhando tranquilo entre as árvores perto da lagoa. ela ficou eufórica, desceu do balanço e olhou firme na sua direção. o menino, do outro lado, sequer notou a sua presença. ela pensou em gritar, chamar por ele e falar de tudo que havia acontecido durante todo o tempo. ele passou, passou e foi embora. foi amor à segunda vista sem rima nem nada, só a dor mais forte que a primeira vez. a menina dos cabelos de fogo espetados, dessa vez, pensou apenas em chorar. ficou em silêncio por um longo período, voltou para o balanço e deixou o vento fazer a sua parte. no fim de tudo, antes de voltar para casa, ela sorriu. no outro dia ele haveria de aparecer outra vez e tudo seria diferente.