27.2.07

morreu. sorriu

pendurado na cerca elétrica depois do choque,
olhou para longe e não achou o sorriso da mulher amada.
morreu.
antes disso, pensou que poderia ter sido mais feliz
no derradeiro instante.
sorriu.

20.2.07

ralos nutrientes

A POESIA:
cospe
bate
geme
fere
chuta
vomita
faz-o-diabo
A MÚSICA:
sente
quente
fala
penetra
irrita
estupra
faz-o-diabo
EU:
pobre
criatura
perdida
absorta
em
ralos

nutrientes.

coração de neon

no alto do morro quatrocentos e três da codificação planificada da prefeitura municipal pulsava um coração saudável e falido de um gangster mordaz.
na cela cento e vinte e quatro do presídio bangu oito ricardo pensava em dulcinéia. moradora comum do barraco setenta e seis do morro idem.
preso porque quase matou por amor. não perdoou o canalha ex-amigo que dela se aproximou.

11.2.07

terra seca sendo molhada

chove e tem um cheiro de terra no ar.
terra seca sendo molhada.
pouca gente na rua.
manhã de domingo estranha sem sol.
o que poderá acontecer no fim do dia?

10.2.07

eu posso rir um pouco também?

A música que tocava no apartamento de cima não chegava, precisamente, a incomodar. Tinha até suas qualidades não posso negar. MPB básica e às vezes até blues com gosto de melancolia perdido na noite. Nem tampouco as conversas que iam até altas horas da madrugada me tiravam o sono. Nada disso, de fato, chegava a ser um problema. O problema verdadeiro, aquilo que me irritava profundamente, que corroía meus sentimentos mais obscuros e me causava um ódio infindável eram os sorrisos. Eles pareciam não fazer outra coisa na vida a não ser rir, rir e rir. Estavam sempre em casa, saíam pouco. Tudo, sem qualquer tipo de exceção ou mesmo critério de seleção era, escandalosamente, engraçado. Por diversas vezes, devo confessar, senti uma imensa vontade de ir até lá, e com a cara mais limpa do mundo, sem qualquer tipo de cerimônia ou introdução educada, perguntar: “eu posso rir um pouco também?”.
Começava logo cedo, tipo seis ou sete horas da manhã. Enquanto tomavam café, riam fartamente das tragédias matutinas no jornal do bom dia. Eram gargalhadas homéricas. Daí por diante era uma alegria só. Riam enquanto ouviam música, no banheiro, cozinhando, e, não se espantem, quando alguém tocava a campanhia vendendo algo. Era como se o barulho da sineta disparasse, no interior de cada um deles, um botão que acionava o riso frouxo e descarado. Era só ouvir o blin blon na porta e já iniciavam uma série interminável, infindável de sorrisos que ecoavam pela escada e vinham dar, diretamente, dentro do meu modesto, porém sincero, apartamento financiado em 8 anos pelo Sistema Financeiro da Habitação.
Quando a comida ficava pronta e eles colocavam a mesa para almoçar, com talheres e pratos perfeitamente perfilados, partiam para uma série incalculável de gargalhadas atrozes. Mesmo com a comida na boca, enquanto mastigavam, era possível ouvir um riso saindo meio sufocado, espremido entre a comida sendo mastigada e o suco facilitando a digestão. Os miseráveis não tinham, sequer, nenhuma complicação estomacal advinda de uma possível indigestão associada ao riso vulgar da hora do almoço.
E naquela hora onde todo ser humano verdadeiramente normal resolve praticar uma das mais maravilhosas invenções da humanidade, a soneca depois do almoço, eles reiniciavam outra sessão de riso desavergonhado e despudorado, entrando pela tarde varando a noite e a felicidade parecendo não ter fim.
No prédio não se falava em outra coisa. Eram os risonhos pra cá, os risonhos pra lá, etc, etc, etc. Aquele massacre diário de felicidade havia virado uma obsessão para mim. Imaginava-me em muitas situações de tristeza. Pensava o quanto seria difícil viver uma depressãozinha simples, sem maiores complicações, regada por aquela trilha sonora pavorosa de sorrisos fartos.
Um dia, possuído por uma coragem sobrenatural, eu resolvi subir e resolver, de uma vez por todas, aquele incomodo interminável. Toquei a campanhia e deu pra ouvir, lá dentro, uma gargalhada inconfundível. Então, senti que alguém caminhava em direção a porta. Havia me preparado para esse encontro decisivo, calculado todas as minhas ações, planejado cada movimento. Porém, naquele instante, tudo se perdeu diante da felicidade que vinha em minha direção. Pensei em correr, disparar escada abaixo e fugir. Estava possuído por um medo irreconhecível, desses de borrar as calças e fazer a vergonha tomar conta de tudo. Estava paralisado. Nem conseguia respirar direito. Era um dos momentos mais importantes da minha vida atual.
Ouvi, lentamente, tão delicado quanto um sussurro, o barulho da chave sendo girada na fechadura. Uma, duas voltas. A maçaneta mexendo-se lentamente, iluminada pela luz do corredor. O brilho refletindo direto na minha retina. Por um instante, argumentei comigo mesmo se deveria debater democraticamente o assunto em prol da minha tranqüilidade. Não consegui. Então, num impulso inexplicável, saquei o revolver que havia levado por precaução, fechei os olhos e, sem vacilar, atirei seis vezes em direção à porta que estava se abrindo.
A gargalhada foi trocada por um grito seco e sofrido. Vagarosamente, abri os olhos e, para meu espanto, vi o que havia acabado de fazer. Dois rapazes de aproximadamente 20 anos estavam caídos no chão e encharcados de sangue. Uma moça da mesma idade olhava para os corpos em estado de completo terror. Só aí percebi o motivo de toda aquela felicidade nas camisas coloridas que todos usavam. Em letras coloridas e grandes, inconfundíveis, estava estampado: “Terapia do Riso: animação em hospitais e clínicas de recuperação”. Então, entristecido e decepcionado eu baixei a cabeça, dei a volta, joguei a arma no chão e fui dormir.

6.2.07

deixe seus demônios falarem por você

a poesia sobre o amor nunca me seduziu.
escrevo, como uma forma de exorcizar os demônios que criei e alimentei durante toda a minha vida. eles, os meus demônios, cultivaram a tristeza, a angústia e a dor como matrizes de sua inspiração. essas mal traçadas linhas resultam dessa combinação pouco clara entre esses demônios e o seu criador.
não me peçam para falar sobre a felicidade. esse tipo de literatura nunca me agradou. parafrasendo o romeno cioran, escrevo, "porque não há outra forma de me vingar". eu tentei, juro que tentei, escrever coisas que apontassem para outra forma de vida. no entanto, na encruzilhada entre a claridade e a escuridão, acabei sempre indo por caminhos mais desconhecidos.
penso que escrevo sobre a vida. sim, sofrer faz parte da essência humana. a dor, a violência, a luxúria e a morte estão à nossa volta. quer ver: deixe seus demônios falarem por você e verás do que és capaz.
só isso.

2.2.07

sorriu. morreu (3)

quando virou para o lado não a reconheceu mais.
o tempo havia passado.
com ele, detalhes haviam sido esquecidos.
não recordava da paixão intensa
e do amor incondicional.
preferiu então fingir que nada havia acontecido.
virou novamente.
do outro lado viu a foto de 40 anos atrás.
o tempo...
ele não perdoa mesmo.
lembrou de coisas que nunca tinha vivido.
tocou seu corpo.
percebeu a falta de rigidez na pele e músculos.
sentiu, na mulher deitada ao seu lado
uma estranha sensação de esquecimento.
lentamente, percebeu que não haveria outro jeito.
fechou os olhos.
sorriu.
morreu.
seria,
finalmente,
feliz.